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Terça - 20 de Novembro de 2018 às 10:58
Por: Isabela Mercuri/Olhar Direto

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Projeto 'Pixaim: nem bom nem ruim, diferente' visitou diversas escolas
Projeto 'Pixaim: nem bom nem ruim, diferente' visitou diversas escolas

Neusa Baptista é jornalista, e ficou conhecida após lançar o livro “Cabelo Ruim? A história de três meninas aprendendo a se aceitar” - que ultrapassou a marca dos 10 mil exemplares vendidos - e passar dez anos levando a discussão para escolas do estado de Mato Grosso, com o projeto “Pixaim: Nem bom, nem ruim – Apenas diferente". Atualmente, faz mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (Ecco), na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde estuda o ativismo de mulheres negras no estado.


Na última semana, ela conversou com o Olhar Conceito sobre seus projetos, o momento atual da política, racismo e a importância do dia 20 de novembro, o ‘Dia da Consciência Negra’. A data foi criada em 2003, e alcançou âmbito nacional em 2011. No entanto, até hoje não é feriado em algumas cidades.



A data foi escolhida por coincidir com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Zumbi foi uma figura importante na história brasileira, reconhecido como um dos pioneiros da resistência contra a escravidão.



Leia a íntegra da entrevista:



Olhar Conceito Quando você começou o projeto você tinha que idade, e de onde veio essa ideia do ‘Projeto Pixaim: nem bom, nem ruim, diferente’?



Neusa Baptista – O projeto ‘Pixaim’, na verdade o livro ‘Cabelo Ruim?’ surgiu primeiro, em 2006 ele foi publicado a primeira vez. E aí a partir dele que eu comecei a fazer as atividades, fui começando a doar o livro, porque a gente fez com a ‘Lei de Incentivo à Cultura’. E eu fui fazendo por conta própria, levando nas instituições que tinham interesse, no projeto Siminina, fazendo doações pra quem trabalhasse com essa temática. E aí eu comecei a fazer essas discussões com crianças, em escolas... então vira e mexe me chamam pra ir em alguma escola falar. Então assim, de lá pra cá já foram desenvolvidos vários projetos, no momento, agora, não está desenvolvendo nenhuma atividade. A última atividade aconteceu em 2016, que foi a ação do projeto pixaim em quatro escolas, mas desde 2007 a gente já fez várias ações, algumas com patrocínio, outras sem, já teve peça teatral, oficina de dança...



OC – Mas antes de escrever o livro qual era sua ideia, foi algo de escrever por algum processo que você passou pessoalmente, ou por observar os outros? Porque você escreveu o livro?



NB – Ele é baseado numa experiência que é comum à maioria, ou até acho que todas as mulheres negras, que é essa experiência de ter uma rejeição em relação ao cabelo, não aceitar. E sofrer o preconceito da sociedade em relação ao cabelo crespo. Então na época, quando eu escrevi, ainda nem existia esse movimento maior, que hoje existe, do crespo. Os produtos pra cabelo crespo cresceram bastante, os grupos de mulheres cresceram muito, as mulheres em torno dessa discussão da aparência do cabelo, da auto aceitação, hoje está muito mais fortalecido do que naquela época. Mas ainda assim é muito difícil de discutir ainda isso em qualquer ambiente. Mas foi baseado nessas experiências pessoais minhas, das minhas irmãs...





OC – E a sua ideia era falar com outras meninas que estavam passando pela mesma coisa?



NB – Na verdade quando você escreve você não tem ideia nenhuma, você só escreve. No começo eu só escrevi a história, e depois a partir do que eu comecei a divulgar que eu vi a resposta das pessoas, como elas estavam sendo tocadas, como os professores estavam gostando do material, eles trabalhavam com o material, ele é adotado em várias escolas hoje... e aí que eu comecei a discutir isso. Mas a intenção, na verdade, a história das meninas foi surgindo conforme eu escrevia, e não teve um objetivo específico. E a partir do momento em que eu comecei a divulgar, ele ganhou esse peso de ser considerado um material paradidático e ser trabalhado.



OC – E nesse tempo que você fez o projeto, levou pras escolas, você enfrentou algum tipo de preconceito, discriminação ou dificuldades?



NB – Geralmente a escola que convida. Mas a gente enfrenta várias dificuldades de estar discutindo isso em escolas porque não tem preparo dos professores pra discutir isso. Então sempre quando a gente é chamado pra escola é nesse período [do dia da Consciência Negra], porque a escola só lembra disso nesse período. Só trabalha isso como se fosse uma data comemorativa ali, não são muitas escolas que têm projeto de longo prazo pra trabalhar sobre diversidade, sobre relações raciais... não se trabalha isso. É um tema que é tratado pontualmente. No dia a dia, no cotidiano mesmo, nos problemas que tem de descriminação no dia a dia, a gente vê que não existe esse preparo dos professores pra trabalhar isso de forma mais antenada com o que os jovens estão vendo, com o que as crianças estão vendo por aí. Com as notícias, com as novidades da legislação, com os temas mais atuais que são discutidos. Existe muita falta de informação, os professores sempre colocam que precisam de mais informação, de mais material didático pra trabalhar isso... mas eu acredito que o material didático é importante, a formação também, claro. Mas é um tema que não depende só de formação. Eu posso ter toda formação, mas é um tema que mexe com a minha postura pessoal perante o mundo. Se eu for discutir relações raciais eu tenho que pensar o que eu penso disso, como que eu ajo sobre isso. Tem situações de professores falarem: ‘ah, mas aqui na escola não tem racismo... essas coisas, quanto mais você fala é pior, porque você está provocando uma revisão, incentivando racismo ao contrário...’. Então isso é uma coisa que não depende tanto de formação em si, a formação ajuda, mas é uma questão que toca em questões pessoais, na postura pessoal do professor. Às vezes existe uma dificuldade do professor de lidar com aquele assunto mesmo.



OC – Quando você ia nas escolas você percebia que as meninas negras se identificavam? Tem alguma história que te marcou?



NB – Sim, com certeza. Principalmente as crianças menores, que não tem tanta dificuldade de lidar com a aparência. Porque tem uma idade que você vão crescendo, na adolescência, que as meninas têm uma preocupação muito grande com o cabelo. Por exemplo, quando a gente estava com a ‘Caravana Pixaim’, tinha oficina de tranças. A gente fazia tranças, gratuito em quem quisesse, e tinha mais interesse das meninas brancas do que das meninas negras. Porque a menina negra nunca ia soltar o cabelo dela pra toca escola ver ela trançar o cabelo, e sabe lá como ia ficar... e também uma grande parte delas tinha o cabelo alisado, e a gente via aquela situação que é comum de meninas com o cabelo alisado, o cabelo todo quebrado, danificado... mas em geral as meninas negras estavam com o cabelo alisado. Como eu falei, naquela época não tinha tanta valorização do cabelo crespo. Hoje em dia a gente vê mais as meninas assumindo o cabelo.





OC – E a que você acha que se deve essa mudança? A valorização do cabelo natural?



NB – Eu não sei todos os fatores, mas acho que tem a ver com a organização das mulheres, as novas gerações do movimento de mulheres negras, tem muita menina nova... são organizações que tem um perfil bem diferente, que trabalha muito com as redes sociais. A entrada maior de mulheres negras na universidade... houve, nos últimos anos, um ganho econômico e educacional, ainda que sensível, mas houve essa entrada, houve essa abertura. As redes sociais também, em que você é emissor, você é produtor. Não depende mais da grande mídia. A influência da grande mídia tradicional está caindo completamente. Agora existem as redes sociais onde as mulheres produzem, dão o recado... tem milhões de mulheres que fazem vídeos sobre temas variados, as mulheres negras estão ocupando esse espaço. Acho que tem a ver com isso, com esses últimos anos em que a população negra conseguiu mais representatividade econômica e educacional.



OC – E isso tem a ver com a sua dissertação de mestrado...



NB – A minha dissertação fala sobre o ativismo de mulheres negras em Cuiabá, mas fala sobre isso também, sobre o histórico do movimento de mulheres negras. E uma das pautas das mulheres negras é a questão da aparência. Aparentemente é uma coisa que tem a ver com moda, beleza... mas a questão da aparência pra mulher negra é uma questão política sempre, porque não se trata somente de moda ou gosto pessoal, ou escolha pessoal. É sempre uma atitude política, não dá pra fugir disso. Quando você usa um rastafári, quando você deixa o cabelo natural, ou quando resolve alisar o cabelo você está transmitindo uma mensagem, deixando uma posição política. E aí o que eu falo na minha dissertação, uma das coisas, é esse aspecto to ativismo de mulheres negras, que é o subjetivo. Quando o ativismo começa antes da organização coletiva, porque ele começa na sua vivência, no seu enfrentamento ou não do racismo, na forma como você lida com isso... porque a gente, inevitavelmente, lida com isso desde que nasce. Então é essa auto construção, auto descoberta, porque eu acredito que todas as mulheres que passam pelo movimento, que resolvem assumir esse lugar da organização coletiva, primeiro passaram – ou ainda estão passando – por uma questão pessoa de aceitar o próprio cabelo, de aceitar a cor, de se assumir como negro.



OC – O seu mestrado é em qual área?



NB – Estudos de Cultura Contemporânea (Ecco), na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e o título é “Ativismo de mulheres negras em Cuiabá: práticas de comunicação e vinculação social”, em que justamente eu falo que todo sujeito é um sujeito comunicante, independente de mídia ou não. Comunicação não é mídia. A gente acostumou a pensar que comunicação é mídia, e até a faculdade é dividida por veículo... e a gente esquece que a comunicação é a relação interpessoal, são os laços que vamos construindo, a interação com sua comunidade... isso tudo é comunicação. Essas mulheres, a partir do movimento, constroem essa rede de comunicação. Elas têm uma rede que não é midiatizada, não depende de mídia. E isso tem um potencial transformador, pra você não ficar pensando somente assim; ‘ah, as mulheres negras são influenciadas pelos modelos de beleza da mídia’... são. Mas elas também constroem seus próprios modelos de beleza, constroem seus próprios modelos de comportamento, de vivencia, enfim. Não são apenas seres manipulados pela mídia.



OC – Você acha que o projeto que você realizou nas escolas te influenciou para o mestrado?



NB – Tem tudo a ver. Porque antes eu nem estudava isso, eu comecei a me interessar porque eu escrevi o livro e as pessoas começaram a ler e a ter como referência... e a me incluir nessa discussão, me chamar. Antes disso eu não estudava, não participava diretamente. E a partir desse estudo eu também pude me aproximar mais do movimento de mulheres negras, conhecer mais. Hoje eu participo do Instituto de Mulheres Negras (Imune).



OC – Você estudou algum grupo de mulheres específico?



NB – O Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso e duas mulheres negras que atuam em outros grupos. Na verdade não é que o Instituto é um grupo consolidado, é uma rede de mulheres que se auxiliam e realizam atividades pra falar sobre essa questão, mas com suas dificuldades, suas limitações, sem recurso, sem tempo... todo mundo trabalha, tem filhos, então é aquela loucura. Eu vivenciei isso durante o estudo e tentei entender como isso funciona, porque funciona. As coisas são realizadas. O Instituto existe desde 2012, tem um histórico. E tem um grupo de mulheres que está à frente, ainda que não seja um grupo dentro dos moldes da estrutura do hegemônico.



OC – Você estava falando que na época do projeto você percebeu que te chamavam mais na época do Dia da Consciência Negra... mas qual você acha que é a importância desse dia, ou o que ele representa pros negros?



NB – Eu acho que nesse contexto atual, catastrófico, que a gente vive agora, a tendência vai ser que esse dia ganhe cada vez mais importância. A gente precisa lembrar cada vez mais, porque apesar de esse tema ser um tema que tem a ver com todo mundo, e que precisa ser lembrado o tempo todo, não precisa se ter um dia pra isso, é uma data que se lembra de um herói importante da nossa história. Muitos jovens talvez não tenham ouvido falar, não conhecem, e também pela importância de demarcar o nosso espaço, afinal de contas nós não somos minoria [numérica]. Não existe mais essa minoria. Então acho importante lembrar disso cada vez mais a partir de agora, porque a tendência vai ser que a nossa história seja cada vez mais apagada. A história vai ser reescrita. Já está sendo reescrita. Então daqui a pouco, se deixar, a gente não vai mais nem lembrar que existiu Zumbi dos Palmares, que existiu Tereza de Benguela, que existiu uma luta negra, que existiu uma resistência das mulheres negras desde a época da escravidão... que essa tendência de organização das mulheres vem de sua herança nas sociedades tradicionais africanas. A tendência vai ser que a gente seja ainda mais levada a distorcer isso. Como se lembrar disso fosse uma forma de ‘racismo ao contrário’. Com essa tendência conservadora de extrema direita, eu acredito que o racismo também se tornar mais violento. [Na verdade] já está se tornando. Os jovens negros já morrem, já são a maioria das vítimas. Mas a tendência vai ser que isso assuma um caráter mais grave, e sem garantia de proteções sociais, porque o direito social do cidadão está sendo diluído. Por isso eu acho importante, cada vez mais, lembrar dessas datas.



OC – E o que você diria pras pessoas que falam em racismo ao contrário?



NB – Eu não sei, acho que eles precisam estudar um pouco de história... a gente tem uma facilidade muito grande de esquecer. Eu fiquei bastante chocada, acho que todo mundo ficou, com a capacidade que as pessoas têm de esquecer algumas coisas e de acreditar em outras. De inventar uma realidade nova tão rápido. Mas é porque nada vem do nada. As pessoas foram levadas a tomar essa atitude, a eleger essa pessoa não só porque foram manipuladas, mas porque o brasileiro é racista mesmo, a gente em esse ranço racista, machista, misógino, com preconceito contra homossexuais, o brasileiro tem isso. Mas muita gente não tinha coragem de falar. Porque é politicamente incorreto. Mas pegou aquele ranço lá do século XVIII. Eu sempre ouvi aquela expressão da ‘jovem democracia’, e é jovem mesmo. Era muito frágil mesmo. Na verdade a gente nunca teve uma democracia, nem sabe o que é... e dentro dessa fragilidade maior vem a importância de sempre tocar nesses assuntos. Mas uma pena que seja só nessa época de 20 de novembro. Porque as questões continuam acontecendo. Como por exemplo, o assassinato da Mariele Franco vai acabar ficando por aí mesmo. Mesmo que se dê andamento, não vão conseguir dar uma resposta do tamanho da gravidade que foi o crime. Porque era mulher e era negra. E era de origem pobre. Foi um quadro que foi apagado, uma pessoa que tinha um valor pro país.



OC – Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar?



NB – Só colocar da importância da gente estar cuidando dessa temática das relações raciais até na imprensa mesmo, de uma forma mais constante. (...) A gente vê notícias sobre crimes cometidos contra mulheres, feminicídio, por exemplo, ou taxa de assassinato e de encarceramento, sem recorte de raça. Não é feito esse recorte de raça. E se você for fazer, realmente vai perceber quem é que está sofrendo mais. Acho que só chamar atenção pra isso, pra que essa temática não morra, e não acabe sendo encoberta, porque a tendência vai ser encobrir... vão tentar tornar invisível como foi ao longo da história. A história dos negros é invisibilizada há muito tempo. Quando eu comecei a pesquisar, agora, sobre o movimento de mulheres negras, eu fiquei chocada com o pouco que se sabe e que se tem escrito sobre isso, sobre a participação das mulheres negras. E de perceber que as mulheres negras começaram a praticar o feminismo, ou o movimento, muito antes da criação do próprio feminismo. Elas têm esse histórico.





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