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Cidades/Geral
Segunda - 09 de Abril de 2007 às 08:05
Por: Onofre Ribeiro

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Tenente-Coronel Zózima Dias dos Santos Sales, da Polícia Militar de Mato Grosso, 42 anos, casada, dois filhos, nasceu em Nortelândia(MT), ingressou na PM em 1984, fez cursos no Rio de Janeiro, em Goiânia e serviu em missão de paz da ONU em Moçambique, em 1994. Hoje coordena o projeto Rede Cidadã, da Secretaria de Justiça e Segurança Pública criado para articular-se com a sociedade e reduzir a criminalidade.Sua defesa é a de que os sistemas sociais e criminal do Estado devem agir juntos.

RDM - O que é o projeto Rede Cidadã?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Ele foi concebido para reduzir a criminalidade e atender crianças e adolescentes vulneráveis à infração.É integrado, envolvendo o poder público criminal com o poder público social para desenvolver uma política pública de segurança, com recursos da Secretaria Nacional de Segurança e do governo estadual através da Secretaria de Justiça e Segurança, além de outras parcerias em construção.

RDM - Onde a rede pode atuar na prevenção criminal?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Devemos atuar num buraco negro que hoje existe na sociedade, um espaço onde devermos construir a prevenção primária, a secundária, com foco na criança e no adolescente que já não é primário, mas ainda não é terciário, que é o sistema prisional.Essa lacuna deve ser preenchida de maneira integrada, porque o ser humano em situação de violência, vive um problema que envolve educação, a saúde, a segurança. No entanto, ele é tratado apenas como um problema de polícia. A filosofia é a segurança pública investir em pessoas e não no delito.Quem comete delito? São pessoas. Por que? Tem causas que existem na sociedade, que está muito carente dos valores que norteiam a conduta e o caráter do ser humano.

RDM - Esse lacuna é privilégio dos pobres?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Não. É uma grande questão social que deve ser resgatada, via uma ação integrada entre a sociedade, o governo, a iniciativa privada e quem mais poder. É o caminho para reduzir a criminalidade.

RDM - Onde o crime começa?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Começa na indiferença. Primeiro, pela falta de valores, quando os pais não olham os filhos com o afeto desejado. Estão criando, mas não estão educando.Assim, as possibilidades positivas se reduzem para os jovens e a falta de valores abre a vulnerabilidade para o crime.Aí vem a indiferença da sociedade e a falta de leitura do poder público de como esse fenômeno violência e criminalidade se estabelece não enxergam o problema. Enquanto as pessoas estão com problemas de fome, dormindo nas ruas, ou cometendo pequenos delitos, não são atendidas. Depois do delito, o Estado aparece e as prende. A indiferença começa quando nossos políticos não compreendem o que é segurança pública.O país vive hoje uma dupla personalidade.

RDM - Como é a dupla personalidade do Estado?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Fala-se em reduzir a criminalidade, mas as atitudes que se toma são para investir no delito, e não em pessoas como prevenção.Por isso a demanda de recursos de custeio é imensa e sobram poucos recursos para o investimento. No Brasil temos que pensar que se o 'Fernandinho Beira Mar' ou o 'Marcolla' morrerem, haverá outro para substituí-los, porque existe uma escola do crime, que está nas ruas, na vulnerabilidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que até os 14 anos ele não pode trabalhar, mas ao mesmo tempo ele está exposto a todos as possibilidades de se envolver com o crime, porque não tem uma escola que lhe dê educação integral, os pais estão ausentes pelo trabalho ou pela falta de comprometimento. Não adianta combater o delito prendendo os criminosos se existe uma escola do crime nas ruas.

RDM - Falando em escola, onde entra a evasão escolar na vulnerabilidade?

Ten.Cel.ZÓZIMA - A evasão é uma escola para o crime, porque o jovem que sai da escola não é identificado e resgatado. A própria escola não compreende esse universo da vulnerabilidade juvenil. Reduzir a criminalidade exige trabalhar com a educação produzindo responsabilidade e oportunidades. A partir daí, definir a educação para todos, para criar oportunidades, focando na inclusão social para quem precisa, porque, em geral, quem precisa não tem mínimas condições de buscá-la. Quando o aluno evade da escola ou não está estudando, a educação não tem a estrutura de ir atrás dele. E ninguém o identifica nessa situação anônima. Mas quando ele comete um delito, o Estado o localiza através da polícia, é apreendido, marcado, marginalizado e excluído.

RDM - O Brasil tem hoje um passivo imenso pós-crime. E antes do crime qual é o potencial?

Ten.Cel.ZÓZIMA - A vulnerabilidade é maior. Porém, o custo seria muitíssimo menor se investíssemos nesse grupo vulnerável que hoje se investe no delito. É o sistema penal, a compra de armas, de veículos, aumento das estruturas policiais e judiciais, para um resultado que é significativo para a sociedade.

RDM - Onde entra a impunidade como estímulo ao crime?

Ten.Cel.ZÓZIMA - A impunidade desperta nos cidadãos descrença no poder público e para os criminosos que o crime compensa. A Lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas diz que: quem comprar, portar estocar em depósito drogas para uso e consumo, é considerado usuário. Como fica hoje a polícia trocando tiros com o traficante para prender armas, drogas? Na hora em que troca tiros é traficante, mas quando chega na delegacia ele é usuário. Temos que pensar muito as conseqüências das leis que estão sendo implantadas em nosso país.Os policiais estão dispostos a morrer pelos usuários?

RDM - Nisso tudo, como entra o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Ele diz que a criança não pode trabalhar até os 14 anos, mas não há uma política de inclusão até essa idade, e nada que os prenda fora da sala de aula. Então, o que elas fazem nas periferias das cidades? Compram drogas, traficam, totalmente expostos à violência, sem atividade cultural, esportiva ou extra-sala de aula.

RDM - Então, estamos dentro de um conflito de personalidade do Estado. Como pensar a segurança?

Ten.Cel.ZÓZIMA - O Estado(país) precisa compreender que deve investir em pessoas para reduzir a criminalidade. Se formos trabalhar a criminalidade apenas pelo combate ao delito, não tem como o empresário e a iniciativa privada participarem. Aí é só criminalidade mesmo, e um círculo permanente que nunca vai acabar.

RDM - A Rede Cidadã, envolve muitos órgãos do próprio governo?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Sim. Ela é uma semente daquilo em que se pode transformar uma política nacional de segurança pública, em que se trabalhe a prevenção evitando que ocorra o delito. Na sociedade existem muitos e bons projetos de pessoas e de instituições que querem fazer alguma coisa, mas estão isoladas, assim como estão isoladas as formas de se pensar a segurança pública nas ações do governo.

RDM - Aí surge o conflito das competências...

Ten.Cel.ZÓZIMA - É outra questão, que gestores públicos e funcionários precisam compreender. O que são competências institucionais, e o que são competências do Estado? Cada instituição ou órgão é um braço do Estado com competências funcionais definidas. Policiais não podem ser transferidos para a saúde, educação ou vice-versa. É o fazer profissional, enquanto a competência do Estado como dever é garantir a segurança pública preservando os principais bens de um ser humano que são a vida, a liberdade e o patrimônio, banalizados diante da violência rotineira. Então, o Estado está acima das instituições. Gestores e funcionários hão de compreender que podem desenvolver atividade ou ação fora de sua função, sem o desvio da função, desde que sejam direcionadas para garantir a vida, a liberdade e o patrimônio. Essa segurança não se faz somente com o sistema criminal, mas, com o social do Estado está acima das instituições Não se distingue que o Estado que atende o delito, a problemas de saúde, a problemas sociais, é o mesmo Estado que faz a prevenção. Nós temos um Estado que atende às demandas das conseqüências, mas não temos um Estado que proteja como um pai. Hoje os nossos gestores e funcionários parecem não entender que, enquanto o usuário está nas ruas em situação de risco, sem atendimento, é problema da polícia. Mas não é. Ele é problema social. É essa lacuna que o Estado precisa preencher, porque é nela que estão os traficantes "se achando", pela ausência do setor público.

RDM - Numa situação ideal, como o Estado deveria agir para prevenir o crime?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Seria através de ações integradas nas comunidades. Hoje a polícia está na comunidade, mas está prendendo. Criou-se a polícia comunitária para solucionar os problemas com a comunidade. O ideal seria que ela identificasse quem é traficante ou usuário de drogas, quem está fora da sala de aula e outras tantas questões sociais.Porém, seria preciso incluir a partir a saúde, a educação, os serviços sociais, o esporte, o lazer, a cultura, a capacitação. E criar oportunidades de inclusão social e contextualizar esses jovens na sua comunidade, para que sejam protagonistas de si. Quando alguém lhe oferecer droga, ter discernimento suficiente para decidir se quer aquilo, ou não, porque têm outras possibilidades, ao contrário de hoje, quando estão vulneráveis e sem perspectiva. O Estado tem que estar presente e isto não se faz só com a polícia. Não é só a escola. É pela integração dos poderes públicos, criminal e social do Estado.

RDM - Um jovem marcado pela infração fica excluído. E a partir daí?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Pessoas só deixam de existir se morrerem, mas a conduta indesejável pode deixar de existir. Uma vez eliminada a possibilidade do delito, a pessoa continua vivendo...

RDM - Sem essa percepção, a polícia vai continuar eternamente correndo atrás de bandido e a marginalidade crescendo sem prevenção?

Ten.Cel.ZÓZIMA - E cada vez aumentando mais. O Estado trabalha com orçamento, que não faz milagres. Com ele, desenvolve as suas ações públicas. Se o crime aumentar, maiores serão os investimentos nos delito, e menores os investimentos na prevenção. Com isso, teremos baixos salários, os professores desestimulados, uma educação péssima, numa engrenagem muito negativa para todos. Começar inverter isso é a grande questão.A proposta da Rede Cidadã é essa. Por exemplo, a carreta do Colégio São Gonçalo está no bairro Pedra 90, levando em parceria cursos de informática para 136 pessoas, pensando na possibilidade de emprego. Também a partir de maio o Rede Cidadã, a Escola de Governo e o CEPROTEC, com parceiros, estarão levando curso de informática para 40 jovens do bairro Paiaguás e adjacências. E aproveitando, discutindo com eles segurança pública na comunidade. Isto vai aumentar com outros parceiros, para pessoas que precisam ser identificadas dentro das comunidades, para a inclusão social, jovens que estão anônimos e totalmente à mercê daquilo que está próximo dele, como pessoas ligadas ao tráfico, à prostituição infantil,e uma série de outras possibilidades de delitos.

RDM - O que de mais doloroso chega ao seu conhecimento na Rede Cidadã, vindo dessas camadas sociais desassistidas?

Ten.Cel.ZÓZIMA - O mais doloroso,é que quase todas as pessoas que chegam até aqui têm o histórico da violência. É um pai que foi assassinado, um pai ou mãe desempregados, os pais que estão separados, ou só tem a mãe ou só o pai, o filho do ex-presidiário, o pai ou a mãe usuários de drogas. Isso é o histórico da violência. O crime por si só, é frio. Os dados estatísticos não dão a dimensão humana do crime, mas não dimensionam o sofrimento que está por trás. A sociedade vive um momento de sofrimento. Temos uma menina que veio aqui, suspeita de prostituição, cuja mãe morreu, e o pai é alcoólatra. Esta é uma situação social, que não é de polícia, mas vai cair na polícia. Aí o sistema criminal e social do Estado tem que trabalhar juntos, um na assistência dela e o outro buscando quem a alicia.

RDM - Mas a comunidade também tem responsabilidades nesses cenários...

Ten.Cel.ZÓZIMA - A comunidade precisa identificar o que ela quer e o que não quer,e tomar atitudes que façam a diferença, porque segurança pública não é só Governo. A comunidade espera sempre que a polícia combata o crime, mas se esquece de que o crime começa quando a família não educa seu filho, não o acompanha na escola, a indiferença da comunidade que vê que ele está se arriscando, mas não o resgata pela orientação ou outra forma de solucionar o problema.

RDM - Onde os pais devem buscar ajuda para os jovens?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Onde eles vão buscar? Cada vez mais pais vêm ao projeto procurar ajuda para incluir os seus filhos nas oportunidades. Então, é preciso que o mesmo Estado que pune desenvolva política de prevenção que protege, por meio das suas instituições e estejam presentes nas comunidades para buscar parcerias com quem esteja disposto a contribuir para um Estado de paz. Aí, sim faremos políticas públicas de segurança.

RDM - Como a Sra. definiria o papel da Rede Cidadã nesse universo?

Ten.Cel.ZÓZIMA - Como ocupante dessa lacuna dentro das comunidades, daí para o Estado, e por que não para o Brasil sem dar espaço para a criminalidade que existe porque tem campo para se estabelecer. O projeto, apesar das dificuldades, oferece atividades de esporte na comunidade para crianças, adolescentes e jovens e quem mais se interessar não tem restrições e atividades culturais (violão, flauta, pintura, etc), para quem mais precisa de um atendimento diferenciado, pelo menos por enquanto. Está em fase de elaboração da grade curricular dos diversos cursos para as famílias das crianças e dos adolescentes inscritos nas atividades culturais e alguns do esporte. Estamos trazendo para esse buraco negro uma luz no fim do túnel e para a criminalidade como uma triste recordação do passado.

RDM - O crime é um negócio?

Ten.Cel.ZÓZIMA - É, na medida em que gera renda. Por que ele mobiliza bilhões? Porque movimenta uma rede de pessoas, como um trabalho organizado. Não é crime organizado. São organizações criminosas que pensam e planejam, usando como massa de manobra as pessoas que estão no buraco negro, pela ausência do Estado. O Estado atua no delito e não em pessoas, pelo próprio boletim de ocorrência policial, que atende crime e não pessoas. Ele deveria perguntar, por exemplo: quem é você, tem família, tem filhos? Aí, se o estado não conhece e não vai lá resgatar essa família, o traficante faz isso. O sistema social e o criminal deveriam caminhar juntos. Assim, concluímos pela dupla personalidade do Estado: ele investe em delitos e não investe em pessoas. Pessoas não se eliminam, se transformam pela educação, oportunidade e responsabilidade. Com indiferença nunca vai mudar. Precisamos de atitude.

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