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Cultura
Segunda - 23 de Janeiro de 2006 às 07:29
Por: Antonio Gonçalves Filho

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Coberta apenas por uma toalha, uma viúva ainda jovem e bonita sai do banho e surpreende o melhor amigo do filho adolescente no quarto. Você já viu cenas parecidas em filmes como A Primeira Noite de Um Homem, mas, em Desengano, quarto romance do escritor mineiro Carlos Nascimento Silva, seu desdobramento é mais dramático que o caso de sedução do (então) jovem Dustin Hoffman por Anne Bancroft. Pudera. Júlia, a viúva que sai do banho, é brasileira, vive na escaldante Rio de Janeiro e não resiste ao corpo do vizinho sarado, um garoto de 17 anos e amigo de seus filhos adolescentes. Para acabar com esse verão quente, a época getulista não é das mais tolerantes com desvios de conduta de viúvas hipersexuadas.

Desengano acompanha a evolução histórica do País desde Getúlio para tentar entender o que aconteceu com a família brasileira - ou parte dela, afetada pelo alarmante número de estupros e casos incestuosos registrados a cada ano. A cena da sedução se passa em 1946, quando Vargas fechou os cassinos e tentou "moralizar" o Brasil. No último capítulo, a Rádio Nacional anuncia a intervenção federal no Estado de Goiás decretada pelo general Castelo Branco. No espaço de quase 20 anos, entre esses dois atos repressores resiste um libertário, a escancarada paixão de Júlia pelo adolescente Beto. Este enfrenta a ira familiar para assumir o papel de marido e pai de duas crianças de sua idade, colegas de brinquedo (sexual, inclusive). Parece Nelson Rodrigues. E é, um pouco. Nascimento e Silva não esconde sua admiração pelo autor de Álbum de Família, obra amarga sobre a implosão do núcleo familiar.

"Nelson foi o homem que fez o Brasil abandonar a linguagem do século 19 e ingressar na modernidade, inventando o diálogo coloquial", justifica o escritor mineiro, que vive no Rio há muitos anos. Autor de três livros - dois deles premiados -, Nascimento Silva apostou na rodriguiana e distensa forma de narrar, além, é claro, de se buscar inspiração direta em sua obra. O ex-professor de literatura brasileira, que teve seu livro de estréia, Casa da Palma (1995), publicado na Alemanha, conta no novo romance uma história de endogamia e adultério salpicada com duas ou três cenas de sadomasoquismo.

A obra de Nelson Rodrigues foi edificada sobre o templo arquetípico da família primeva - e Álbum de Família (1945) é um exemplo dessa construção mítica. A de Carlos Nascimento Silva, desde A Casa da Palma, lançado meio século depois, em 1995, foi pensada como uma revisão histórica do Brasil a partir desse modelo. Nesse primeiro livro, que conta a saga de uma família portuguesa no Nordeste brasileiro entre os séculos 18 e 19, já era clara sua preocupação em construir um romance de tese, mistura de crônica, ensaio e ficção que tenta investigar as razões da derrocada da instituição familiar. Em A Casa de Palma cabe tudo: psicanálise, rituais pagãos, desvios sexuais. Em Desengano, um pouco mais: incesto, alguns tapas e assédio sexual. O adolescente Beto casa-se com a vizinha (Júlia), que o trai com o patrão, e, mais tarde, troca-a pela filha (Ana), assediada pelo irmão Neno.

Reflexão - Parece exagerado, mas a realidade é bem mais. Em sua defesa, o escritor cita casos de endogamia que a imprensa noticia - já sem muito alarde, desanimada pela rotineira ocorrência de estupros em família (principalmente de baixa renda). Essa desmedida paixão cresce proporcionalmente à miséria e vazio educacional, que sempre redunda no existencial. Merece, segundo Nascimento Silva, uma reflexão profunda sobre os infortúnios que corroem há décadas milhares de famílias brasileiras. Nascido em Minas, ele cita o poema de um famoso patrício e diz: "Nada surge mais numa casa mineira do que pombos e primos." Não há, portanto, saída de emergência nesse incestuoso e freudiano labirinto. "Em "Vale da Soledade", interessava saber o que estava por trás daquelas janelas fechadas, como diria Pedro Nava."

Nelson Rodrigues escancarou igualmente essas janelas e se deu mal, até ser reabilitado anos depois. Nascimento Silva corre o mesmo risco. Embora seja reconhecida pelos críticos, sua literatura reforça alguns pontos incômodos da obra de seu antecessor. A viúva alegre do escritor mineiro em Desengano, por exemplo, gosta de apanhar. É inevitável a lembrança de um dos axiomas de Rodrigues: "Toda mulher gosta de apanhar, menos as neuróticas." O escritor mineiro jura que discorda. Diz que a inclusão do sadomasoquismo faz parte de um estudo pessoal sobre a "natureza do mal", iniciada com Vale da Soledade. Nesse livro, todos agem como se estivessem num romance gótico do escocês James Hogg. Ou seja: em defesa de interesses próprios e com más intenções.

O lado escuro predomina nesses narcisos que cospem no próprio rosto, para usar uma expressão rodriguiana. Isso explica a freqüência com que o autor mineiro recorre (nas epígrafes) ao escritor norte-americano Philip Roth para explicar a natureza do mal. Roth é pessimista e autocentrado. Um pouco paranóico também, considerando o projeto de "Bildungsroman" que é seu último livro, Complô contra a América. O brasileiro Desengano, em certa medida, também é um romance de formação que alterna fatos históricos e familiares. Só que embalado por citações de uma imaginária e paródica trilha sonora feita de canções antigas de Bororó e Lupicínio Rodrigues.




Fonte: AE

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