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Cultura
Segunda - 19 de Abril de 2004 às 14:13
Por: Antônio Gonçalves Filho

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São Paulo - A uma certa altura de Elizabeth Costello (Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 34,65), o escritor sul-africano J.M. Coetzee conclui que as crenças do escritor não servem ao propósito de aproximá-lo de outros seres. Ao contrário. Com freqüência, elas o conduzem ao isolamento, o que explica a aversão de Coetzee por entrevistas. Justificável. Depois delas, seu livro A Vida dos Animais (2002) suscitou tanta incompreensão que Coetzee fez muito bem em transformar Elizabeth Costello numa obra de difícil definição. Livro de ensaios? Autobiografia disfarçada? Manifesto antiacadêmico? Tudo isso e um pouco mais.

A Vida dos Animais, do qual foram extraídas duas das oito palestras de Elizabeth Costello, compara o tratamento dispensado aos animais com o Holocausto, motivo de todo o barulho em torno do primeiro livro. O horror dos campos de concentração criados pelo nazismo, segundo Coetzee, não difere muito dos métodos de matança do gado nos dias de hoje. A analogia é incômoda, mas a verdade é que os algozes, incapazes de sentir o que suas vítimas sentem, continuam perseguindo e matando animais. Coetzee não vê diferença entre um orangotango e um acadêmico de Harvard. Todos têm direito à vida, segundo Elizabeth Costello, alter ego do escritor, nascida em Melbourne em 1928, casada duas vezes, autora de 12 livros e... inventada por Coetzee.

A personagem-título simplesmente não existe. É uma criatura em luta para sobreviver longe do olhar público. Como escritora, necessita do isolamento, mas, paradoxalmente, não pode prescindir do reconhecimento de seus pares. Assim, o livro começa com Elizabeth chegando a Pensilvânia para receber um prêmio literário de US$ 50 mil. Como ela, Coetzee é um veterano em prêmios. Foi o único escritor que conquistou o Booker Prize por duas vezes. Ganhou o Nobel no ano passado e nada indica que tenha ficado infeliz com os milhões recebidos da Academia sueca. Em contrapartida, tem de conviver com uma espécie perversa, que mata por prazer e pratica o terror.

Ser escritora, diz Elizabeth Costello, é reconhecer a impotência, a vergonha de escrever ficção num mundo que não precisa dela. A explicação vem mais adiante, no pós-escrito, que "conclui", de forma arbitrária, a carta de lorde Chandos a Francis Bacon. Nela, há um século, Hugo von Hofmannsthal evocava o conflito entre um escritor do século 17 e a comunidade acadêmica, questionando se a poesia ainda seria necessária num mundo dominado pelo pensamento científico. D.H. Lawrence dizia que vivemos numa era trágica. Coetzee diz que a nossa é uma "época de aflição". Tudo vira alegoria na pós-modernidade. Nada tem valor real. Corpo e alma estão dramaticamente divorciados. Palavras não atingem mais ninguém. A última carta de Elizabeth é datada de 11 de setembro, AD 1603. Mais uma alegoria, que Coetzee assume em nome de todas as criaturas reduzidas a cinzas em nome de abstrações ideológicas, religiosas e científicas.




Fonte: Estadão.com

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