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Cultura
Segunda - 08 de Abril de 2019 às 14:46
Por: Jad Laranjeira/Mídia News

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A escritora do livro
A escritora do livro "O Falar Cuiabano" lançado em 2014

"Tchá por Deus! Hoje é o aniversário dos 300 anos dessa cidade quente pra besteira. Vai ter aúfa de dgente lá na Casa de Nhô Dito. Vai ter petchada, rasqueado e o povo só vai prantchar de lá amanhã bem cedo, depois do quebra-torto".

Se você é cuiabano de "pé rachado" ou "pau-rodado", certamente já ouviu algumas dessas expressões que fazem parte do vocabulário de quem vive na Baixada Cuiabana.

Apesar de ainda hoje não se saber ao certo a origem do falar cuiabano, estudiosos e escritores acreditam que trata-se de uma herança trazida dos portugueses, espanhóis e principalmente dos indígenas, que foram os primeiros ribeirinhos da cuiabania no século XIX.

Segundo a escritora e doutora em Educação, Maria Cristina Campos, que lançou em 2014 o livro “O Falar Cuiabano”, toda essa característica cultural diferenciada do povo cuiabano corre risco de desaparecer com o passar dos anos. Isso ocorreria, segundo ela, porque as novas gerações sentem vergonha desse modo de falar.

Não tem que ter preconceito nenhum com o falar, a pessoa tem o direito de falar do jeito que ela quiser

“A assimilação do falar cuiabano está dentro de um contexto globalizado. Hoje os próprios jovens, filhos dos cuiabanos ‘raiz’, sejam eles já migrantes que se estabeleceram aqui ou os tradicionais, têm muita vergonha desse falar. Eu já tive experiências de ir às escolas dar palestras e falar que não tem porquê sentirem vergonha, mas eles se recusam a falar desse jeito. Apesar disso, ainda resiste em comunidades tradicionais, e até mesmo em alguns bairros mais longes. Se você sair de Cuiabá e andar uns 30 km para o interior adentro, você ainda vê isso com muita força”, disse.

Importância do conhecimento e bullying

Atualmente, pode ser considerado raro conhecer algum adolescente ou jovem que fale o bom “cuiabanês”, tão comum entre os pais e avós. Nas escolas, inclusive, os jovens chegam a sofrer bullying - e esse seria o principal motivo desse falar deixar de existir.

“Quando alguém chega falando nas escolas assim, o que acontece? Sofre bullyg, e é debochado, aí ele fica com vergonha e começa a mudar o jeito dele falar, até para não ser incomodado. Isso é uma situação recorrente”, contou a escritora.

A autora relembra que seu livro foi exatamente escrito com o propósito de ser distribuído nas escolas do Estado, mas isso nunca veio a acontecer.

“Na época, foi uma encomenda da Secretaria de Cultura do Estado, que queria a produção de um material para as escolas, para que fosse trabalhada com os alunos essa questão da cultura. A ideia, a princípio, era fazer um glossário dos termos cuiabanos, mas falei que isso já existe. Então, disse que para as salas de aula seria interessante saber a constituição cultural do falar, mostrar isso, porque hoje muitos professores não sabem”, disse.

Chinelo de dedo, a gente chama de ‘bambolê’. Dizíamos: 'Vou calçar meu bambolê'. Nunca vi isso em lugar nenhum outro lugar, só aqui

De acordo com Maria Cristina, o trabalho de produção durou quatro meses, mas acabou o Governo e o livro acabou no depósito da secretaria, não cumprindo a sua função de ir para as escolas – o que ela considera que seria ainda hoje de extrema importância, justamente para as expressões culturais do cuiabano serem conhecidas e não esquecidas.

“Mostrar a fala, desde a composição da cuiabania, com a chegada dos portugueses, dos espanhóis, porque todo o Brasil é composto de uma miscelânea de povos. E aqui você vê o português, a força indígena que é um elemento que historicamente foi bastante negado. Tem elementos indígenas em determinados traços, por exemplo, nessa indistinção de gênero, quando eu falo ‘vou lá no Maria’ e não na ou ‘à'. E quando você falo o ‘no’, é uma mistura de gêneros que ficou comprovado que veio de línguas indígenas”, afirmou.

Para a escritora, tudo é questão de saber usar as expressões.

“Porque quando a gente estuda o português, a gente estuda as variantes lingüísticas, e quando estuda isso, você sabe que na oralidade não existe o certo ou o errado, existe o adequado e o não adequado. Então, eu posso falar com determinado jeito com a minha comunidade. Agora se eu vou, por exemplo, dar uma palestra ou outra situação mais formal, aí mudo o registro para ficar adequada para aquela situação específica. Não é você deixar de falar, mas é você aprender a dominar outras variantes para você se colocar na situação ideal. Não tem que ter preconceito nenhum com o falar, a pessoa tem o direito de falar do jeito que ela quiser”, explicou

A educadora defende que, além de estar dentro das escolas para que as crianças conheçam suas raízes culturais, a integração de políticas públicas na cidade também ajudaria bastante.

Ela lembra de quando ainda era criança e aprendeu a usar as expressões cuiabanas.

Eu acho que nós estamos perdendo muito ao longo dos anos, em nome do tal des-envolvimento, que é um não envolvimento

“Quando eu era criança morava no Coxipó da Ponte. Então, todo dia à tarde tinha lanche, e às vezes tínhamos chá mate com pão ou com bolo de queijo, bolo de arroz. Então, o ‘tchá co bolo’ ficou conhecido por isso”, disse.

“Chinelo de dedo, a gente chama de ‘bambolê’. Dizíamos: 'Vou calçar meu bambolê'. Nunca vi isso em lugar nenhum outro lugar, só aqui. Quando a gente jogava ‘bolita’, eu brincava com os meninos, e se alguém tinha uma bolita nova e bonita ou cobiçada, chamava ela de ‘laurita’. E se era velha ou quebrada, era ‘cascabuia'" relembrou, aos risos.

A falta desse vocabulário hoje em dia e do incentivo dele na sociedade assusta e entristece a educadora, que diz que Cuiabá comemora 300 anos de “des-envolvimento”.

“Eu acho que nós estamos perdendo muito ao longo dos anos, em nome do tal des-envolvimento, que é um não envolvimento. Porque toda essa economia global, que envolve a grande pecuária e agricultura, não traz nada pra nós de positivo, não fica um centavo. Não vejo nas comunidades. As suas áreas naturais estão sendo destruídas, eu não estou vendo ganho nenhum para a população”, afirmou.

“Cuiabá, por exemplo, cresceu demais, tem todas as características negativas dos grandes centros, mas ela tem poucas características positivas, principalmente na área cultural”, criticou.





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